domingo, 30 de dezembro de 2012


Tinha 10 anos quando foi diagnosticada minha dupla personalidade. Todo mundo achava que eu estava agressiva demais. E não era para menos. Minha vida era uma droga. Dinheiro era algo quase inexistente. Ouvia diariamente as reclamações da minha mãe sobre as contas e a falta de caráter do meu pai. A geladeira sempre sem opções. O guarda roupa, pior ainda. Nem ficar doente eu podia, porque não tinha grana pro remédio.
Pra foder ainda mais com tudo perdi o controle sobre minhas necessidades fisiológicas. Cagava e mijava em qualquer lugar. Perdi as contas de quantas vezes passei essa vergonha na escola. As professoras não acreditavam na minha incontinência urinária. Só quando sentiam o fedor é que iam ver o que estava acontecendo. Eu pedia para ir ao banheiro e elas não deixavam. Não conseguia segurar e o resultado era sempre desastroso.
Teve dias em que molhei todo o short na pia do sanitário para disfarçar a urina. Não tinha explicações plausíveis para a roupa molhada, mas ainda era melhor que assumir a verdade. Nos dias de dor de barriga era bem mais difícil esconder. Sentar na grama ás vezes colava, mas o cheiro era insuportável. Nem forças para explicar o que acontecia ou simplesmente para pedir para ir embora, eu tinha. Foram momentos difíceis até para lembrar detalhes. Sei que ainda sinto vergonha enquanto escrevo.
Fora isso, quando não estava gritando com alguém, me refugiava em meu mundo e lá ficava até a tempestade mental passar. Eram horas de devaneios, sonhos e fantasias mirabolantes. Imaginava outra realidade, que fosse mais feliz do que a verdadeira. No meu mundo meus pais ainda estavam juntos e não havia dificuldades. Nem emocionais e menos ainda financeiras. E por ser bom, era onde eu queria ficar para sempre.
Minha mãe resolveu notar que havia alguma coisa errada e me levou em um psicólogo. Esses de postinho, cheios de pressa e de má vontade. Obviamente não descobriu o que eu tinha. Me encaminhou para um psiquiatra, com a rapidez de quem quer se livrar de uma batata quente. Então, o outro médico, careca e com a cara fechada, fez testes e mais testes e enfim, disse que eu tinha desenvolvido dupla personalidade.
Depois do diagnóstico: uma merda. Me entupiram de remédio e mamãe ás vezes me olhava como se eu estivesse ficando louca. Quando tomava aquelas porcarias, me sentia desanimada, triste, sem forças. O dia passava sem que eu tomasse conhecimento. Passei a fingir que engolia os comprimidos. Depois jogava tudo no vaso e dava descarga. Eu gostava da pessoa que estava me tornando.
A Morgana surgiu para proteger a Amanda do mundo. Para dar fim ao sentimentalismo abundante. Para ignorar o sofrimento e transformá-lo em ódio. E aos poucos ela foi ganhando espaço, se fortalecendo e tomando conta. E como sempre foi mais divertida e interessante, tinha mais amigos. Mas ao mesmo tempo não se apegava e até hoje não sabe o que é escrúpulos. Ama a mentira e a usa sem moderação e sem se importar com suas conseqüências.
 Mesmo assim Morgana é legal. Todo mundo gosta dela. E como ela é fingida, até o psiquiatra achava que o tratamento estava dando resultado. Era só fazer uma cara de grogue, dizer que estava cansada e parecer tranqüila.
O problema era só quando as duas resolviam disputar a liderança. Aí ficava mais difícil controlar as crises. Mas mamãe quase nunca estava em casa. Não tinha tempo para reparar nessas besteiras infantis. E assim fui aprendendo a conviver com elas. E claro que permanecem distintas, até hoje. A propósito, escolhi Morgana porque adoro a história do Rei Arthur. Ser a bruxa é mais emocionante. Sempre me apeguei e torci pras vilãs das novelas. Há pouco tempo me disseram que parecia uma. Mas juro que não foi intencional.

CAPÍTULO 2 – Põe suas estrelas no azul



“Todo dia o dia não quer raiar o sol do dia, toda trilha é andada com a fé de quem crê no ditado, de que o dia insiste em nascer, mas o dia insiste em nascer pra ver deitar o novo. Toda rosa é rosa porque assim ela é chamada, toda Bossa é nova e você não liga se é usada. Todo o carnaval tem seu fim e é o fim, e é o fim. Toda banda tem um tarol, quem sabe eu não toco. Todo samba tem um refrão pra levantar o bloco. Toda escolha é feita por quem acorda já deitado. Toda folha elege um alguém que mora logo ao lado. E pinta o estandarte de azul. E põe suas estrelas no azul, pra que mudar? Deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz. Mas o dia insiste em nascer...”
                                                                                           (Los Hermanos)

terça-feira, 18 de dezembro de 2012


Antes do Marcos nascer, fui sua companhia inseparável. Principalmente nos campos de futebol, onde se reunia com os amigos para beber e falar de mulher. Até que deixei de lado a delicadeza das menininhas de família e aprendi a gostar de bola, bebidas, carrinhos e garotas, não necessariamente nessa ordem.
Até os seis anos convivi com os meus pais debaixo do mesmo teto e a convivência não era serena. A mulher revoltada que ele criou, não aceitava sua boemia. Nas madrugadas, quando o ouvia chegando da rua e mamãe levantando da cama disposta a brigar, pegava a mãozinha do Marcos e me escondia no quarto. Já previa o que ia acontecer.
A gente se abraçava e eu tentava tampar seus ouvidos para que não escutasse os gritos, os palavrões e os barulhos de luta corporal que preferia não olhar.
Ela chorava e implorava a ele o mínimo de compaixão. Que pensasse nela, nos filhos e tentasse construir um futuro. Ele, sempre irônico e bêbado, ria das suas lágrimas e cuspia na sua dor. Com uma raiva impossível de conter, transbordando, pegava qualquer objeto que encontrava pela frente para golpeá-lo. Às vezes ele aceitava as agressões. Nas outras, revidava. No dia seguinte podíamos ver as marcas deixadas no corpo dela, apesar das tentativas de esconder.
A semana seguia sem qualquer resquício de paz, tréguas e sem que víssemos troca de carinhos entre eles. Eu e Marcos ficávamos a esperar que pelo menos com a gente (inocentes) fosse diferente. Mas não! Irritados, passavam por nós descontando seu nervosismo. Tristes, abaixávamos a cabeça, tentando não nos ferir ainda mais. Não tínhamos como esbravejar, lutar pelos nossos direitos de ter uma família feliz, sadia, que nos servisse de alicerce.
Ninguém dava ouvido a duas crianças, que só pediam um pouco de atenção e estavam com medo.
Com o passar do tempo tudo piorava. Papai chegava cada dia mais tarde. Isso quando chegava. Dormíamos com minha mãe na cama de casal e era possível sentir sua insônia revelada pela inquietude. Nas minhas orações, pedia a Deus para ele não entrar pela porta. Presenciaria mais uma briga. Pedia que aquela aflição acabasse logo e o jeito que Ele deu para atender as minhas preces, foi consumando a separação após 12 anos de relacionamento.
Pensando bem, se não podia ser de um jeito que agradasse ambas as partes, foi melhor assim. Eu tinha seis e o Marcos quatro anos.
Papai sempre confundiu tudo. Achou que além de se separar de minha mãe, deveria abandonar os filhos, como quem esquece um livro velho na estante. Não posso afirmar, a menos que estivesse mentindo descaradamente, que fui uma garota com uma família feliz.
Seria suave como algodão doce com gosto de baunilha, mas nesse quesito não me permito sonhar. Não me lembro de muita coisa além do que já relatei, mas me lembro bem da falta que meu pai me fez quando foi embora porque ela o pôs para fora de casa.
Ainda sinto a falta das risadas grosseiras ecoando pela casa. Da barba que espetava meu rosto, fazendo-o ficar vermelho e dolorido, quando a esfregava em mim, buscando ver a minha irritação. Ele sente um prazer mórbido em me deixar com raiva, da mesma forma que me delicio em fazê-lo sofrer. Assumir isso é confirmar uma fraqueza que tento esconder, às vezes até de mim mesma.
Eu não tive um pai. Ele foi ausente todo o tempo, tanto emocional, como financeiramente. A biologia e os genes começaram a não fazer sentido algum na relação que tinha com aquele homem, de quem herdei o nariz grande demais para o resto do rosto delicado que tenho e que me fazia promessas jamais cumpridas. A criança que eu ainda era passou a não acreditar em palavras masculinas.
Cresci prestando muita atenção em minha mãe. Percebendo o sofrimento dela e me solidarizando. Vendo-a ter que trabalhar o dia inteiro e deixar meu irmão e eu com a minha avó, para que pudesse ser arrimo de família. Isso tudo porque meu pai estava mais preocupado com a cerveja, o futebol e com sua nova mulher. Não dava a mínima pros filhos que tinha ajudado a gerar e nem por obrigação ajudava a manter.
Não pagava a pensão alimentícia e por isso ela arcava com tudo sozinha. Só víamos a cor de algum dinheiro quando mamãe mandava prendê-lo. Aconteceram umas três vezes, mas nunca sequer dormiu na cadeia. Meu tio cheio da grana assinava o cheque e mandava soltá-lo. Talvez por isso seja o tipo do cara irresponsável. Mimos excessivos da mãe, mulheres que bancam seus caprichos e a sorte de sempre ter alguém para livrá-lo de situações embaraçosas ou doloridas.
É um cara feliz. As pessoas ao seu redor sofrem com as situações que causa, menos ele. É desprendido de bens materiais, apesar de fingir de magnata quando está com os carros importados da patroa. É uma pessoa interessante para conversar, para não dizer mentiroso de marca maior. Faz-se de culto e conhece muitos lugares. Só não entendeu que já tem quatro filhos, (eu, Marcos e duas meninas, uma com cada mulher), que já tenho 26 anos e sequer sabe qual a marca do meu achocolatado preferido.
Todo esse tempo tenta (prefiro acreditar que sim) saber como é ser pai, sem nunca ter conseguido. Talvez por isso faça filhos com freqüência, para ter mais uma chance, que sempre acaba desperdiçando. Está tentando agora ser um homem melhor, com o neto. É possível sentir e eu espero que consiga. Ele é meu pai e não quero mais ter motivos para odiá-lo.
Já minha mãe, capricorniana, (e os capricornianos rondam a minha vida) é totalmente pé no chão. Sempre quis construir uma casa, ter um carro, o mínimo de luxo para mim e para o meu irmão. Em suas histórias, conta que papai dizia durante as brigas que iria gastar tudo que tinha.
- E se eu morrer amanhã?
Só que o meu futuro-amanhã já chegou. O futuro-amanhã-incerto dele está chegando e mesmo assim continua gastando tudo sem pensar no que vai ser quando perder os pais que ainda lhe dão abrigo. 
Tento transparecer que toda essa história não me afetou em nada ou o mínimo possível. Tento fingir para as pessoas que convivo bem com isso. Mas no fundo, é o que mais me marcou. Amo meu pai como um brinquedo que nunca me foi permitido ter, uma utopia da vida que não tive oportunidade de vivenciar e como um termo que não conheci na essência.
Para as pessoas, demonstro que não estou nem aí para ele, porque na verdade sei que não devia estar e aprendi a ser muito orgulhosa para revelar o que sinto.
Traduzindo, até os seis anos uma família complicada. Depois, família nenhuma. Para todo mundo digo que prefiro a separação dos meus pais, mas no fundo não é bem assim. Tenho inveja de quem tem um pai que se preocupa. Sou ciente de que a minha grande sorte é ter a mãe que tenho.
Ela sim é de verdade, um modelo, um exemplo para mim. É como sempre quis e ainda quero ser, apesar de ter complicado os meus conflitos com os seus excessos. Sejam eles de zelo e preocupação por ter que cumprir dois papéis ou mesmo de raiva encubada tentando sair de dentro dela, por ter desperdiçado seus sonhos com um homem como meu pai.
Apesar de ter dado conta do recado, é uma situação covarde e desumana já que ela não fez os filhos sozinha, nem com o dedo do meio. Meu pai deveria ter tido o mínimo de compaixão e sensibilidade ao ver que duas crianças dependiam dele para viver. Mesmo assim se deu o direito de ser leviano.
Se existir outra vida e às vezes até acredito que exista, vou levar essa mágoa comigo. Por enquanto não consigo fingir que está tudo bem e nem perdoar suas atitudes. Acima de tudo, não consigo enxergar em seus olhos nenhum arrependimento pelo que fez.
Só vejo prepotência, arrogância e cinismo. Ainda se sente no direito de julgar meus atos. Mas tais julgamentos são para outro momento da história.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

1.1 - Jogo fora os sentimentos e depois?



“Tenho as mãos atadas ao redor do meu pescoço, eu queria mesmo era tocar seu corpo. Reprimo meus momentos... e depois? Depois toco meu corpo, eu tenho frio. Sou um louco amargurado e até vazio. E me chamam atenção, mas eu sou louco é de paixão, e você? Você que me retire desse poço, eu sei ainda sou moço pra viver... A verdade é toda nua e ninguém vê. Eu tenho as mãos atadas sem ação e um coração maior que eu para doar. Reprimo meus momentos, jogo fora os sentimentos sem querer. Eu quero é me livrar, voar, sumir, perder, não sei, não sei querer mais. A qualquer hora é sempre agora, chora, quero cantar você... Liberte o meu pensar... Agora é hora de dizer muito prazer, sorte ou azar e amar. Simplesmente amar você.”
                                          (Zélia Duncan e Frejat)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012


Meus pais se conheceram jovens. Ela tinha 19 e ele 18 anos. Amor igual ao que minha mãe sentia pelo meu pai não se vê há tempos. Quem sabe foi esse mesmo amor que a cegou por completo. Não percebeu que ainda era um moleque, com sonhos juvenis futebolísticos frustrados. Enquanto ela, nem para sonhos tinha tempo.
Trabalhava como faxineira para pagar o colégio onde estudava, enquanto papai havia sido expulso de todos por onde tinha passado. Desde a sétima série não ia à escola. Ainda assim, disse a ela que fazia medicina. (Devo ter herdado dele o talento para a mentira). Na época, meu avô tinha uma vida estável, capaz de pagar qualquer curso de medicina. Seu dinheiro só não pôde comprar a vontade do filho.
Por três anos de namoro minha mãe se manteve virgem. Ele se divertia com mulheres de menos princípios. Logo que resolveu se entregar e por falta de maiores explicações sobre o uso do anticoncepcional, aos 23 anos engravidou. Quando começou a transar, ela achava que deveria tomar remédio todos os dias. Um médico não foi uma alternativa pensada para maiores esclarecimentos.
Após algumas poucas trepadas, o espermatozóide Amanda alcançou o óvulo. Se imaginasse como é o mundo aqui fora, talvez não tivesse corrido tanto, me esforçado tanto.
Mamãe parou de estudar para concentrar os gastos no bebê que estava por vir. Já papai estava concentrado naqueles sonhos juvenis frustrados, como se não tivesse participado da concepção daquela criança. Prefiro não saber se chegou a sugerir que ela fizesse um aborto. Mas se no caso da pergunta à resposta fosse afirmativa, não estranharia. Seria apenas mais uma decepção com esse cara que me ensinaram a chamar de pai.
Decidido a não aceitar a proposta do meu avô materno, (não sei se por livre e espontânea vontade ou por pura e simples pressão, acreditando na segunda hipótese) ganhou um bar do pai e foi se casar. O bar era seu, de onde deveria tirar o sustento da família que crescia. Quem trabalhava para a grana entrar no caixa, era ela. Grávida e depois comigo no colo.
Ele preferia sentar-se à mesa com os amigos e bancar as rodadas de cerveja. Fazia média, vivia de aparências e ostentava a imagem de cafajeste que tanto lhe cai bem.
Preocupação com o bem estar dela e da filha pequena, ali naquele ambiente? Nenhuma. O que sempre foi prioridade em sua vida? A boêmia. Seu luxo (lixo) eram as madrugadas acompanhadas dos amigos e eventualmente de alguma mulher. A família era para quando sobrasse um tempo, se sobrasse. Ela, se redobrando entre ser mãe, mulher, dona de casa e de bar, ia amontoando funções e decepções.
Sonhos iam se desfazendo. O homem que amava era a grande frustração da sua vida. O amargor se fez sua companhia inseparável.
Papai fez dela uma mulher rude, fria. Apagou todo o brilho nos olhos daquela menina que só tinha olhos para ele. Destruiu sua crença no amor e em qualquer sentimento bom. Acabou com sua ingenuidade. Tirou de mim a oportunidade de ter uma mãe feliz e amável. Uma mulher sem carinhos desaprendeu a dar carinho. Ele não se dava para mim e me tirou ela também.
Como posso perdoar tais gestos, se cada erro seu são punhais afiados no meu peito, que doem e sangram mesmo depois de 26 anos?
Como posso viver entre o pai herói que quis ter e a fraude que tive? Não dá para correr em sua direção e abraçá-lo como se nada tivesse acontecido. Não permito que esses desejos insanos de ficar perto, sentir seu cheiro, beijar suas bochechas com a barba cerrada, sejam realizados impulsivamente. Não posso ser sua filha, se vi e ainda vejo tanto sofrimento nos olhos da minha mãe. Por sua culpa, sua máxima culpa.
Ele escolheu me abandonar e como ainda posso querer e precisar tanto de um homem assim?
O que me corrói por dentro são as suas atitudes machistas e o fato de querer esquecê-las para pedir que me pegue no colo e me dê todo o momento que não vivi ao seu lado. Não posso e não deveria amá-lo, mas o amo acima de tudo e de todos. Penso nele mais do que gostaria. No ódio que sinto, na raiva e no desprezo que deveria sentir e na falta imensurável que me faz.
Como ele consegue dormir depois de tudo que fez? Como consegue passar por mim sem me dizer bom dia, sem demonstrar saudades ou o menor arrependimento? Como consegue ter nas mãos todas as minhas lágrimas e ainda se desfazer delas como se nada disso fosse importante? Quantas vezes digo ao mundo que se ele morresse, nenhuma falta faria na minha vida. Quando penso nele dentro de um caixão, quero que me enterrem junto.
Que enterrem todos os momentos ruins que presenciei. Todos os dias que o chamei em vão. Cada aperto no peito, saudade, abraço recolhido. Orgulho ferido que maltrata, machuca, me faz chorar desesperadamente enquanto escrevo essas palavras sem reflexão. Um impulso maldito de por para fora cada desengano familiar guardado, amontoado nas minhas costas como um fardo pesado demais, do qual ainda não consegui me desfazer.

sábado, 1 de dezembro de 2012


Meu pai queria um menino, mas me chamo Amanda e isso não ficou bem resolvido na cabeça dele. Eu era um embrião e não sei até que ponto os beijinhos dados na barriga de mamãe, com elogios posteriores ao garotão do papai podem ter me atingido. De qualquer forma, se enquadra como argumento para ilustrar meu lesbianismo atual.
Seguiram-se os meses. O médico se aproximou dele na sala de espera:
- O bebê nasceu e é uma garotinha.
Posso imaginar a cara de decepção que tentou disfarçar ao entrar no quarto e entregar as flores para minha mãe. Quem iria acompanhá-lo nas peladas de futebol? Quem se sentaria à mesa com ele, beberia cerveja e falaria sobre assuntos banais, desse tipo que os homens adoram? Quem iria levar adiante suas características de macho machista?
Se soubesse meu sexo antes, poderia ter reconsiderado a proposta do meu avô materno:
- Não precisa se casar com a minha filha. Onde comem onze, comem doze. Eu crio o bebê!
Mas agora já era tarde. Eu estava chacoalhando no ventre quando decidiu entrar na igreja, de terno e gravata, e dizer mentiras na frente do padre. Jurou amá-la na alegria e na tristeza, na saúde e na doença e todas essas baboseiras que se impõem numa cerimônia religiosa. Alguns choramingam, outros sentem pena do enforcamento. No final não passa de mero teatro sem motivos para aclamação.
Para mim, o pior foi ter prometido que seria até que a morte os separasse. Já se foram 18 anos e não fui a nenhum velório.
Para o resto da família paterna eu também não era uma novidade. Meu tio já tinha duas filhas para que minha avó e minha tia emperiquitassem e ensinassem a ser verdadeiras damas. Não precisavam de mim para suprir esses desejos. Fala sério! Um menino seria o ideal para completar o ciclo de netinhos. Mas não! Eu estava lá para atrapalhar os planos e não ser nem uma coisa nem outra. Nem o garotão almejado, muito menos a garotinha delicada, sensível e cópia das minhas primas.
Às três horas da madrugada, daquele dia 12 de março, depois de ter feito minha mãe sofrer desde as 10 da manhã e ter demonstrado pela primeira vez minha teimosia, chorei. Escolhi que não nasceria de parto normal. Devo ter me assustado com aquele canal estreito e não dilatado por onde queriam me passar. Alguém espaçosa não poderia vir ao mundo se apertando, mesmo se a alternativa viesse a cortar a carne daquela que mais amo no mundo.
 Cesariana e meu rosto sujo com seu sangue. Mal ela sabia o quanto ainda sagraria por minha culpa.
Por mais uma ironia, a maioria dos dedos que apontavam em minha direção, afirmavam que eu era a cara do papai. Não que isso me traga algum orgulho. Se tem uma coisa que não suporto é que me comparem com ele, mesmo que apenas fisicamente.