Tinha 10 anos quando foi diagnosticada minha dupla
personalidade. Todo mundo achava que eu estava agressiva demais. E não era para
menos. Minha vida era uma droga. Dinheiro era algo quase inexistente. Ouvia
diariamente as reclamações da minha mãe sobre as contas e a falta de caráter do
meu pai. A geladeira sempre sem opções. O guarda roupa, pior ainda. Nem ficar
doente eu podia, porque não tinha grana pro remédio.
Pra foder ainda mais com tudo perdi o controle sobre
minhas necessidades fisiológicas. Cagava e mijava em qualquer lugar. Perdi as
contas de quantas vezes passei essa vergonha na escola. As professoras não
acreditavam na minha incontinência urinária. Só quando sentiam o fedor é que
iam ver o que estava acontecendo. Eu pedia para ir ao banheiro e elas não
deixavam. Não conseguia segurar e o resultado era sempre desastroso.
Teve dias em que molhei todo o short na pia do sanitário para
disfarçar a urina. Não tinha explicações plausíveis para a roupa molhada, mas
ainda era melhor que assumir a verdade. Nos dias de dor de barriga era bem mais
difícil esconder. Sentar na grama ás vezes colava, mas o cheiro era
insuportável. Nem forças para explicar o que acontecia ou simplesmente para
pedir para ir embora, eu tinha. Foram momentos difíceis até para lembrar
detalhes. Sei que ainda sinto vergonha enquanto escrevo.
Fora isso, quando não estava gritando com alguém, me
refugiava em meu mundo e lá ficava até a tempestade mental passar. Eram horas
de devaneios, sonhos e fantasias mirabolantes. Imaginava outra realidade, que fosse
mais feliz do que a verdadeira. No meu mundo meus pais ainda estavam juntos e
não havia dificuldades. Nem emocionais e menos ainda financeiras. E por ser
bom, era onde eu queria ficar para sempre.
Minha mãe resolveu notar que havia alguma coisa errada e
me levou em um psicólogo. Esses de postinho, cheios de pressa e de má vontade. Obviamente
não descobriu o que eu tinha. Me encaminhou para um psiquiatra, com a rapidez
de quem quer se livrar de uma batata quente. Então, o outro médico, careca e
com a cara fechada, fez testes e mais testes e enfim, disse que eu tinha
desenvolvido dupla personalidade.
Depois do diagnóstico: uma merda. Me entupiram de remédio
e mamãe ás vezes me olhava como se eu estivesse ficando louca. Quando tomava
aquelas porcarias, me sentia desanimada, triste, sem forças. O dia passava sem
que eu tomasse conhecimento. Passei a fingir que engolia os comprimidos. Depois
jogava tudo no vaso e dava descarga. Eu gostava da pessoa que estava me
tornando.
A Morgana surgiu para proteger a Amanda do mundo. Para
dar fim ao sentimentalismo abundante. Para ignorar o sofrimento e transformá-lo
em ódio. E aos poucos ela foi ganhando espaço, se fortalecendo e tomando conta.
E como sempre foi mais divertida e interessante, tinha mais amigos. Mas ao
mesmo tempo não se apegava e até hoje não sabe o que é escrúpulos. Ama a
mentira e a usa sem moderação e sem se importar com suas conseqüências.
Mesmo assim
Morgana é legal. Todo mundo gosta dela. E como ela é fingida, até o psiquiatra
achava que o tratamento estava dando resultado. Era só fazer uma cara de
grogue, dizer que estava cansada e parecer tranqüila.
O problema era só quando as duas resolviam disputar a
liderança. Aí ficava mais difícil controlar as crises. Mas mamãe quase nunca
estava em casa. Não tinha tempo para reparar nessas besteiras infantis. E assim
fui aprendendo a conviver com elas. E claro que permanecem distintas, até hoje. A propósito, escolhi Morgana porque adoro a história
do Rei Arthur. Ser a bruxa é mais emocionante. Sempre me apeguei e torci pras
vilãs das novelas. Há pouco tempo me disseram que parecia uma. Mas juro que não
foi intencional.
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