segunda-feira, 3 de dezembro de 2012


Meus pais se conheceram jovens. Ela tinha 19 e ele 18 anos. Amor igual ao que minha mãe sentia pelo meu pai não se vê há tempos. Quem sabe foi esse mesmo amor que a cegou por completo. Não percebeu que ainda era um moleque, com sonhos juvenis futebolísticos frustrados. Enquanto ela, nem para sonhos tinha tempo.
Trabalhava como faxineira para pagar o colégio onde estudava, enquanto papai havia sido expulso de todos por onde tinha passado. Desde a sétima série não ia à escola. Ainda assim, disse a ela que fazia medicina. (Devo ter herdado dele o talento para a mentira). Na época, meu avô tinha uma vida estável, capaz de pagar qualquer curso de medicina. Seu dinheiro só não pôde comprar a vontade do filho.
Por três anos de namoro minha mãe se manteve virgem. Ele se divertia com mulheres de menos princípios. Logo que resolveu se entregar e por falta de maiores explicações sobre o uso do anticoncepcional, aos 23 anos engravidou. Quando começou a transar, ela achava que deveria tomar remédio todos os dias. Um médico não foi uma alternativa pensada para maiores esclarecimentos.
Após algumas poucas trepadas, o espermatozóide Amanda alcançou o óvulo. Se imaginasse como é o mundo aqui fora, talvez não tivesse corrido tanto, me esforçado tanto.
Mamãe parou de estudar para concentrar os gastos no bebê que estava por vir. Já papai estava concentrado naqueles sonhos juvenis frustrados, como se não tivesse participado da concepção daquela criança. Prefiro não saber se chegou a sugerir que ela fizesse um aborto. Mas se no caso da pergunta à resposta fosse afirmativa, não estranharia. Seria apenas mais uma decepção com esse cara que me ensinaram a chamar de pai.
Decidido a não aceitar a proposta do meu avô materno, (não sei se por livre e espontânea vontade ou por pura e simples pressão, acreditando na segunda hipótese) ganhou um bar do pai e foi se casar. O bar era seu, de onde deveria tirar o sustento da família que crescia. Quem trabalhava para a grana entrar no caixa, era ela. Grávida e depois comigo no colo.
Ele preferia sentar-se à mesa com os amigos e bancar as rodadas de cerveja. Fazia média, vivia de aparências e ostentava a imagem de cafajeste que tanto lhe cai bem.
Preocupação com o bem estar dela e da filha pequena, ali naquele ambiente? Nenhuma. O que sempre foi prioridade em sua vida? A boêmia. Seu luxo (lixo) eram as madrugadas acompanhadas dos amigos e eventualmente de alguma mulher. A família era para quando sobrasse um tempo, se sobrasse. Ela, se redobrando entre ser mãe, mulher, dona de casa e de bar, ia amontoando funções e decepções.
Sonhos iam se desfazendo. O homem que amava era a grande frustração da sua vida. O amargor se fez sua companhia inseparável.
Papai fez dela uma mulher rude, fria. Apagou todo o brilho nos olhos daquela menina que só tinha olhos para ele. Destruiu sua crença no amor e em qualquer sentimento bom. Acabou com sua ingenuidade. Tirou de mim a oportunidade de ter uma mãe feliz e amável. Uma mulher sem carinhos desaprendeu a dar carinho. Ele não se dava para mim e me tirou ela também.
Como posso perdoar tais gestos, se cada erro seu são punhais afiados no meu peito, que doem e sangram mesmo depois de 26 anos?
Como posso viver entre o pai herói que quis ter e a fraude que tive? Não dá para correr em sua direção e abraçá-lo como se nada tivesse acontecido. Não permito que esses desejos insanos de ficar perto, sentir seu cheiro, beijar suas bochechas com a barba cerrada, sejam realizados impulsivamente. Não posso ser sua filha, se vi e ainda vejo tanto sofrimento nos olhos da minha mãe. Por sua culpa, sua máxima culpa.
Ele escolheu me abandonar e como ainda posso querer e precisar tanto de um homem assim?
O que me corrói por dentro são as suas atitudes machistas e o fato de querer esquecê-las para pedir que me pegue no colo e me dê todo o momento que não vivi ao seu lado. Não posso e não deveria amá-lo, mas o amo acima de tudo e de todos. Penso nele mais do que gostaria. No ódio que sinto, na raiva e no desprezo que deveria sentir e na falta imensurável que me faz.
Como ele consegue dormir depois de tudo que fez? Como consegue passar por mim sem me dizer bom dia, sem demonstrar saudades ou o menor arrependimento? Como consegue ter nas mãos todas as minhas lágrimas e ainda se desfazer delas como se nada disso fosse importante? Quantas vezes digo ao mundo que se ele morresse, nenhuma falta faria na minha vida. Quando penso nele dentro de um caixão, quero que me enterrem junto.
Que enterrem todos os momentos ruins que presenciei. Todos os dias que o chamei em vão. Cada aperto no peito, saudade, abraço recolhido. Orgulho ferido que maltrata, machuca, me faz chorar desesperadamente enquanto escrevo essas palavras sem reflexão. Um impulso maldito de por para fora cada desengano familiar guardado, amontoado nas minhas costas como um fardo pesado demais, do qual ainda não consegui me desfazer.

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