Antes do Marcos nascer, fui sua companhia inseparável.
Principalmente nos campos de futebol, onde se reunia com os amigos para beber e
falar de mulher. Até que deixei de lado a delicadeza das menininhas de família
e aprendi a gostar de bola, bebidas, carrinhos e garotas, não necessariamente
nessa ordem.
Até os seis anos convivi com os meus pais debaixo do
mesmo teto e a convivência não era serena. A mulher revoltada que ele criou,
não aceitava sua boemia. Nas madrugadas, quando o ouvia chegando da rua e mamãe
levantando da cama disposta a brigar, pegava a mãozinha do Marcos e me escondia
no quarto. Já previa o que ia acontecer.
A gente se abraçava e eu tentava tampar seus ouvidos para
que não escutasse os gritos, os palavrões e os barulhos de luta corporal que
preferia não olhar.
Ela chorava e implorava a ele o mínimo de compaixão. Que
pensasse nela, nos filhos e tentasse construir um futuro. Ele, sempre irônico e
bêbado, ria das suas lágrimas e cuspia na sua dor. Com uma raiva impossível de
conter, transbordando, pegava qualquer objeto que encontrava pela frente para
golpeá-lo. Às vezes ele aceitava as agressões. Nas outras, revidava. No dia
seguinte podíamos ver as marcas deixadas no corpo dela, apesar das tentativas
de esconder.
A semana seguia sem qualquer resquício de paz, tréguas e
sem que víssemos troca de carinhos entre eles. Eu e Marcos ficávamos a esperar
que pelo menos com a gente (inocentes) fosse diferente. Mas não! Irritados,
passavam por nós descontando seu nervosismo. Tristes, abaixávamos a cabeça,
tentando não nos ferir ainda mais. Não tínhamos como esbravejar, lutar pelos
nossos direitos de ter uma família feliz, sadia, que nos servisse de alicerce.
Ninguém dava ouvido a duas crianças, que só pediam um
pouco de atenção e estavam com medo.
Com o passar do tempo tudo piorava. Papai chegava cada
dia mais tarde. Isso quando chegava. Dormíamos com minha mãe na cama de casal e
era possível sentir sua insônia revelada pela inquietude. Nas minhas orações,
pedia a Deus para ele não entrar pela porta. Presenciaria mais uma briga. Pedia
que aquela aflição acabasse logo e o jeito que Ele deu para atender as minhas preces,
foi consumando a separação após 12 anos de relacionamento.
Pensando bem, se não podia ser de um jeito que agradasse
ambas as partes, foi melhor assim. Eu tinha seis e o Marcos quatro anos.
Papai sempre confundiu tudo. Achou que além de se separar
de minha mãe, deveria abandonar os filhos, como quem esquece um livro velho na
estante. Não posso afirmar, a menos que estivesse mentindo descaradamente, que
fui uma garota com uma família feliz.
Seria suave como algodão doce com gosto de baunilha, mas
nesse quesito não me permito sonhar. Não me lembro de muita coisa além do que
já relatei, mas me lembro bem da falta que meu pai me fez quando foi embora
porque ela o pôs para fora de casa.
Ainda sinto a falta das risadas grosseiras ecoando pela
casa. Da barba que espetava meu rosto, fazendo-o ficar vermelho e dolorido,
quando a esfregava em mim, buscando ver a minha irritação. Ele sente um prazer
mórbido em me deixar com raiva, da mesma forma que me delicio em fazê-lo
sofrer. Assumir isso é confirmar uma fraqueza que tento esconder, às vezes até
de mim mesma.
Eu não tive um pai. Ele foi ausente todo o tempo, tanto
emocional, como financeiramente. A biologia e os genes começaram a não fazer
sentido algum na relação que tinha com aquele homem, de quem herdei o nariz
grande demais para o resto do rosto delicado que tenho e que me fazia promessas
jamais cumpridas. A criança que eu ainda era passou a não acreditar em palavras
masculinas.
Cresci prestando muita atenção em minha mãe. Percebendo o
sofrimento dela e me solidarizando. Vendo-a ter que trabalhar o dia inteiro e
deixar meu irmão e eu com a minha avó, para que pudesse ser arrimo de família.
Isso tudo porque meu pai estava mais preocupado com a cerveja, o futebol e com
sua nova mulher. Não dava a mínima pros filhos que tinha ajudado a gerar e nem
por obrigação ajudava a manter.
Não pagava a pensão alimentícia e por isso ela arcava com
tudo sozinha. Só víamos a cor de algum dinheiro quando mamãe mandava prendê-lo.
Aconteceram umas três vezes, mas nunca sequer dormiu na cadeia. Meu tio cheio
da grana assinava o cheque e mandava soltá-lo. Talvez por isso seja o tipo do
cara irresponsável. Mimos excessivos da mãe, mulheres que bancam seus caprichos
e a sorte de sempre ter alguém para livrá-lo de situações embaraçosas ou
doloridas.
É um cara feliz. As pessoas ao seu redor sofrem com as
situações que causa, menos ele. É desprendido de bens materiais, apesar de
fingir de magnata quando está com os carros importados da patroa. É uma pessoa
interessante para conversar, para não dizer mentiroso de marca maior. Faz-se de
culto e conhece muitos lugares. Só não entendeu que já tem quatro filhos, (eu,
Marcos e duas meninas, uma com cada mulher), que já tenho 26 anos e sequer sabe
qual a marca do meu achocolatado preferido.
Todo esse tempo tenta (prefiro acreditar que sim) saber
como é ser pai, sem nunca ter conseguido. Talvez por isso faça filhos com
freqüência, para ter mais uma chance, que sempre acaba desperdiçando. Está
tentando agora ser um homem melhor, com o neto. É possível sentir e eu espero
que consiga. Ele é meu pai e não quero mais ter motivos para odiá-lo.
Já minha mãe, capricorniana, (e os capricornianos rondam
a minha vida) é totalmente pé no chão. Sempre quis construir uma casa, ter um
carro, o mínimo de luxo para mim e para o meu irmão. Em suas histórias, conta
que papai dizia durante as brigas que iria gastar tudo que tinha.
- E se eu morrer amanhã?
Só que o meu futuro-amanhã já chegou. O
futuro-amanhã-incerto dele está chegando e mesmo assim continua gastando tudo
sem pensar no que vai ser quando perder os pais que ainda lhe dão abrigo.
Tento transparecer que toda essa história não me afetou
em nada ou o mínimo possível. Tento fingir para as pessoas que convivo bem com
isso. Mas no fundo, é o que mais me marcou. Amo meu pai como um brinquedo que
nunca me foi permitido ter, uma utopia da vida que não tive oportunidade de
vivenciar e como um termo que não conheci na essência.
Para as pessoas, demonstro que não estou nem aí para ele,
porque na verdade sei que não devia estar e aprendi a ser muito orgulhosa para revelar
o que sinto.
Traduzindo, até os seis anos uma família complicada.
Depois, família nenhuma. Para todo mundo digo que prefiro a separação dos meus
pais, mas no fundo não é bem assim. Tenho inveja de quem tem um pai que se
preocupa. Sou ciente de que a minha grande sorte é ter a mãe que tenho.
Ela sim é de verdade, um modelo, um exemplo para mim. É
como sempre quis e ainda quero ser, apesar de ter complicado os meus conflitos
com os seus excessos. Sejam eles de zelo e preocupação por ter que cumprir dois
papéis ou mesmo de raiva encubada tentando sair de dentro dela, por ter
desperdiçado seus sonhos com um homem como meu pai.
Apesar de ter dado conta do recado, é uma situação
covarde e desumana já que ela não fez os filhos sozinha, nem com o dedo do meio.
Meu pai deveria ter tido o mínimo de compaixão e sensibilidade ao ver que duas
crianças dependiam dele para viver. Mesmo assim se deu o direito de ser
leviano.
Se existir outra vida e às vezes até acredito que exista,
vou levar essa mágoa comigo. Por enquanto não consigo fingir que está tudo bem
e nem perdoar suas atitudes. Acima de tudo, não consigo enxergar em seus olhos
nenhum arrependimento pelo que fez.
Só vejo prepotência, arrogância e cinismo. Ainda se sente
no direito de julgar meus atos. Mas tais julgamentos são para outro momento da
história.