domingo, 30 de dezembro de 2012


Tinha 10 anos quando foi diagnosticada minha dupla personalidade. Todo mundo achava que eu estava agressiva demais. E não era para menos. Minha vida era uma droga. Dinheiro era algo quase inexistente. Ouvia diariamente as reclamações da minha mãe sobre as contas e a falta de caráter do meu pai. A geladeira sempre sem opções. O guarda roupa, pior ainda. Nem ficar doente eu podia, porque não tinha grana pro remédio.
Pra foder ainda mais com tudo perdi o controle sobre minhas necessidades fisiológicas. Cagava e mijava em qualquer lugar. Perdi as contas de quantas vezes passei essa vergonha na escola. As professoras não acreditavam na minha incontinência urinária. Só quando sentiam o fedor é que iam ver o que estava acontecendo. Eu pedia para ir ao banheiro e elas não deixavam. Não conseguia segurar e o resultado era sempre desastroso.
Teve dias em que molhei todo o short na pia do sanitário para disfarçar a urina. Não tinha explicações plausíveis para a roupa molhada, mas ainda era melhor que assumir a verdade. Nos dias de dor de barriga era bem mais difícil esconder. Sentar na grama ás vezes colava, mas o cheiro era insuportável. Nem forças para explicar o que acontecia ou simplesmente para pedir para ir embora, eu tinha. Foram momentos difíceis até para lembrar detalhes. Sei que ainda sinto vergonha enquanto escrevo.
Fora isso, quando não estava gritando com alguém, me refugiava em meu mundo e lá ficava até a tempestade mental passar. Eram horas de devaneios, sonhos e fantasias mirabolantes. Imaginava outra realidade, que fosse mais feliz do que a verdadeira. No meu mundo meus pais ainda estavam juntos e não havia dificuldades. Nem emocionais e menos ainda financeiras. E por ser bom, era onde eu queria ficar para sempre.
Minha mãe resolveu notar que havia alguma coisa errada e me levou em um psicólogo. Esses de postinho, cheios de pressa e de má vontade. Obviamente não descobriu o que eu tinha. Me encaminhou para um psiquiatra, com a rapidez de quem quer se livrar de uma batata quente. Então, o outro médico, careca e com a cara fechada, fez testes e mais testes e enfim, disse que eu tinha desenvolvido dupla personalidade.
Depois do diagnóstico: uma merda. Me entupiram de remédio e mamãe ás vezes me olhava como se eu estivesse ficando louca. Quando tomava aquelas porcarias, me sentia desanimada, triste, sem forças. O dia passava sem que eu tomasse conhecimento. Passei a fingir que engolia os comprimidos. Depois jogava tudo no vaso e dava descarga. Eu gostava da pessoa que estava me tornando.
A Morgana surgiu para proteger a Amanda do mundo. Para dar fim ao sentimentalismo abundante. Para ignorar o sofrimento e transformá-lo em ódio. E aos poucos ela foi ganhando espaço, se fortalecendo e tomando conta. E como sempre foi mais divertida e interessante, tinha mais amigos. Mas ao mesmo tempo não se apegava e até hoje não sabe o que é escrúpulos. Ama a mentira e a usa sem moderação e sem se importar com suas conseqüências.
 Mesmo assim Morgana é legal. Todo mundo gosta dela. E como ela é fingida, até o psiquiatra achava que o tratamento estava dando resultado. Era só fazer uma cara de grogue, dizer que estava cansada e parecer tranqüila.
O problema era só quando as duas resolviam disputar a liderança. Aí ficava mais difícil controlar as crises. Mas mamãe quase nunca estava em casa. Não tinha tempo para reparar nessas besteiras infantis. E assim fui aprendendo a conviver com elas. E claro que permanecem distintas, até hoje. A propósito, escolhi Morgana porque adoro a história do Rei Arthur. Ser a bruxa é mais emocionante. Sempre me apeguei e torci pras vilãs das novelas. Há pouco tempo me disseram que parecia uma. Mas juro que não foi intencional.

CAPÍTULO 2 – Põe suas estrelas no azul



“Todo dia o dia não quer raiar o sol do dia, toda trilha é andada com a fé de quem crê no ditado, de que o dia insiste em nascer, mas o dia insiste em nascer pra ver deitar o novo. Toda rosa é rosa porque assim ela é chamada, toda Bossa é nova e você não liga se é usada. Todo o carnaval tem seu fim e é o fim, e é o fim. Toda banda tem um tarol, quem sabe eu não toco. Todo samba tem um refrão pra levantar o bloco. Toda escolha é feita por quem acorda já deitado. Toda folha elege um alguém que mora logo ao lado. E pinta o estandarte de azul. E põe suas estrelas no azul, pra que mudar? Deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz. Mas o dia insiste em nascer...”
                                                                                           (Los Hermanos)

terça-feira, 18 de dezembro de 2012


Antes do Marcos nascer, fui sua companhia inseparável. Principalmente nos campos de futebol, onde se reunia com os amigos para beber e falar de mulher. Até que deixei de lado a delicadeza das menininhas de família e aprendi a gostar de bola, bebidas, carrinhos e garotas, não necessariamente nessa ordem.
Até os seis anos convivi com os meus pais debaixo do mesmo teto e a convivência não era serena. A mulher revoltada que ele criou, não aceitava sua boemia. Nas madrugadas, quando o ouvia chegando da rua e mamãe levantando da cama disposta a brigar, pegava a mãozinha do Marcos e me escondia no quarto. Já previa o que ia acontecer.
A gente se abraçava e eu tentava tampar seus ouvidos para que não escutasse os gritos, os palavrões e os barulhos de luta corporal que preferia não olhar.
Ela chorava e implorava a ele o mínimo de compaixão. Que pensasse nela, nos filhos e tentasse construir um futuro. Ele, sempre irônico e bêbado, ria das suas lágrimas e cuspia na sua dor. Com uma raiva impossível de conter, transbordando, pegava qualquer objeto que encontrava pela frente para golpeá-lo. Às vezes ele aceitava as agressões. Nas outras, revidava. No dia seguinte podíamos ver as marcas deixadas no corpo dela, apesar das tentativas de esconder.
A semana seguia sem qualquer resquício de paz, tréguas e sem que víssemos troca de carinhos entre eles. Eu e Marcos ficávamos a esperar que pelo menos com a gente (inocentes) fosse diferente. Mas não! Irritados, passavam por nós descontando seu nervosismo. Tristes, abaixávamos a cabeça, tentando não nos ferir ainda mais. Não tínhamos como esbravejar, lutar pelos nossos direitos de ter uma família feliz, sadia, que nos servisse de alicerce.
Ninguém dava ouvido a duas crianças, que só pediam um pouco de atenção e estavam com medo.
Com o passar do tempo tudo piorava. Papai chegava cada dia mais tarde. Isso quando chegava. Dormíamos com minha mãe na cama de casal e era possível sentir sua insônia revelada pela inquietude. Nas minhas orações, pedia a Deus para ele não entrar pela porta. Presenciaria mais uma briga. Pedia que aquela aflição acabasse logo e o jeito que Ele deu para atender as minhas preces, foi consumando a separação após 12 anos de relacionamento.
Pensando bem, se não podia ser de um jeito que agradasse ambas as partes, foi melhor assim. Eu tinha seis e o Marcos quatro anos.
Papai sempre confundiu tudo. Achou que além de se separar de minha mãe, deveria abandonar os filhos, como quem esquece um livro velho na estante. Não posso afirmar, a menos que estivesse mentindo descaradamente, que fui uma garota com uma família feliz.
Seria suave como algodão doce com gosto de baunilha, mas nesse quesito não me permito sonhar. Não me lembro de muita coisa além do que já relatei, mas me lembro bem da falta que meu pai me fez quando foi embora porque ela o pôs para fora de casa.
Ainda sinto a falta das risadas grosseiras ecoando pela casa. Da barba que espetava meu rosto, fazendo-o ficar vermelho e dolorido, quando a esfregava em mim, buscando ver a minha irritação. Ele sente um prazer mórbido em me deixar com raiva, da mesma forma que me delicio em fazê-lo sofrer. Assumir isso é confirmar uma fraqueza que tento esconder, às vezes até de mim mesma.
Eu não tive um pai. Ele foi ausente todo o tempo, tanto emocional, como financeiramente. A biologia e os genes começaram a não fazer sentido algum na relação que tinha com aquele homem, de quem herdei o nariz grande demais para o resto do rosto delicado que tenho e que me fazia promessas jamais cumpridas. A criança que eu ainda era passou a não acreditar em palavras masculinas.
Cresci prestando muita atenção em minha mãe. Percebendo o sofrimento dela e me solidarizando. Vendo-a ter que trabalhar o dia inteiro e deixar meu irmão e eu com a minha avó, para que pudesse ser arrimo de família. Isso tudo porque meu pai estava mais preocupado com a cerveja, o futebol e com sua nova mulher. Não dava a mínima pros filhos que tinha ajudado a gerar e nem por obrigação ajudava a manter.
Não pagava a pensão alimentícia e por isso ela arcava com tudo sozinha. Só víamos a cor de algum dinheiro quando mamãe mandava prendê-lo. Aconteceram umas três vezes, mas nunca sequer dormiu na cadeia. Meu tio cheio da grana assinava o cheque e mandava soltá-lo. Talvez por isso seja o tipo do cara irresponsável. Mimos excessivos da mãe, mulheres que bancam seus caprichos e a sorte de sempre ter alguém para livrá-lo de situações embaraçosas ou doloridas.
É um cara feliz. As pessoas ao seu redor sofrem com as situações que causa, menos ele. É desprendido de bens materiais, apesar de fingir de magnata quando está com os carros importados da patroa. É uma pessoa interessante para conversar, para não dizer mentiroso de marca maior. Faz-se de culto e conhece muitos lugares. Só não entendeu que já tem quatro filhos, (eu, Marcos e duas meninas, uma com cada mulher), que já tenho 26 anos e sequer sabe qual a marca do meu achocolatado preferido.
Todo esse tempo tenta (prefiro acreditar que sim) saber como é ser pai, sem nunca ter conseguido. Talvez por isso faça filhos com freqüência, para ter mais uma chance, que sempre acaba desperdiçando. Está tentando agora ser um homem melhor, com o neto. É possível sentir e eu espero que consiga. Ele é meu pai e não quero mais ter motivos para odiá-lo.
Já minha mãe, capricorniana, (e os capricornianos rondam a minha vida) é totalmente pé no chão. Sempre quis construir uma casa, ter um carro, o mínimo de luxo para mim e para o meu irmão. Em suas histórias, conta que papai dizia durante as brigas que iria gastar tudo que tinha.
- E se eu morrer amanhã?
Só que o meu futuro-amanhã já chegou. O futuro-amanhã-incerto dele está chegando e mesmo assim continua gastando tudo sem pensar no que vai ser quando perder os pais que ainda lhe dão abrigo. 
Tento transparecer que toda essa história não me afetou em nada ou o mínimo possível. Tento fingir para as pessoas que convivo bem com isso. Mas no fundo, é o que mais me marcou. Amo meu pai como um brinquedo que nunca me foi permitido ter, uma utopia da vida que não tive oportunidade de vivenciar e como um termo que não conheci na essência.
Para as pessoas, demonstro que não estou nem aí para ele, porque na verdade sei que não devia estar e aprendi a ser muito orgulhosa para revelar o que sinto.
Traduzindo, até os seis anos uma família complicada. Depois, família nenhuma. Para todo mundo digo que prefiro a separação dos meus pais, mas no fundo não é bem assim. Tenho inveja de quem tem um pai que se preocupa. Sou ciente de que a minha grande sorte é ter a mãe que tenho.
Ela sim é de verdade, um modelo, um exemplo para mim. É como sempre quis e ainda quero ser, apesar de ter complicado os meus conflitos com os seus excessos. Sejam eles de zelo e preocupação por ter que cumprir dois papéis ou mesmo de raiva encubada tentando sair de dentro dela, por ter desperdiçado seus sonhos com um homem como meu pai.
Apesar de ter dado conta do recado, é uma situação covarde e desumana já que ela não fez os filhos sozinha, nem com o dedo do meio. Meu pai deveria ter tido o mínimo de compaixão e sensibilidade ao ver que duas crianças dependiam dele para viver. Mesmo assim se deu o direito de ser leviano.
Se existir outra vida e às vezes até acredito que exista, vou levar essa mágoa comigo. Por enquanto não consigo fingir que está tudo bem e nem perdoar suas atitudes. Acima de tudo, não consigo enxergar em seus olhos nenhum arrependimento pelo que fez.
Só vejo prepotência, arrogância e cinismo. Ainda se sente no direito de julgar meus atos. Mas tais julgamentos são para outro momento da história.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

1.1 - Jogo fora os sentimentos e depois?



“Tenho as mãos atadas ao redor do meu pescoço, eu queria mesmo era tocar seu corpo. Reprimo meus momentos... e depois? Depois toco meu corpo, eu tenho frio. Sou um louco amargurado e até vazio. E me chamam atenção, mas eu sou louco é de paixão, e você? Você que me retire desse poço, eu sei ainda sou moço pra viver... A verdade é toda nua e ninguém vê. Eu tenho as mãos atadas sem ação e um coração maior que eu para doar. Reprimo meus momentos, jogo fora os sentimentos sem querer. Eu quero é me livrar, voar, sumir, perder, não sei, não sei querer mais. A qualquer hora é sempre agora, chora, quero cantar você... Liberte o meu pensar... Agora é hora de dizer muito prazer, sorte ou azar e amar. Simplesmente amar você.”
                                          (Zélia Duncan e Frejat)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012


Meus pais se conheceram jovens. Ela tinha 19 e ele 18 anos. Amor igual ao que minha mãe sentia pelo meu pai não se vê há tempos. Quem sabe foi esse mesmo amor que a cegou por completo. Não percebeu que ainda era um moleque, com sonhos juvenis futebolísticos frustrados. Enquanto ela, nem para sonhos tinha tempo.
Trabalhava como faxineira para pagar o colégio onde estudava, enquanto papai havia sido expulso de todos por onde tinha passado. Desde a sétima série não ia à escola. Ainda assim, disse a ela que fazia medicina. (Devo ter herdado dele o talento para a mentira). Na época, meu avô tinha uma vida estável, capaz de pagar qualquer curso de medicina. Seu dinheiro só não pôde comprar a vontade do filho.
Por três anos de namoro minha mãe se manteve virgem. Ele se divertia com mulheres de menos princípios. Logo que resolveu se entregar e por falta de maiores explicações sobre o uso do anticoncepcional, aos 23 anos engravidou. Quando começou a transar, ela achava que deveria tomar remédio todos os dias. Um médico não foi uma alternativa pensada para maiores esclarecimentos.
Após algumas poucas trepadas, o espermatozóide Amanda alcançou o óvulo. Se imaginasse como é o mundo aqui fora, talvez não tivesse corrido tanto, me esforçado tanto.
Mamãe parou de estudar para concentrar os gastos no bebê que estava por vir. Já papai estava concentrado naqueles sonhos juvenis frustrados, como se não tivesse participado da concepção daquela criança. Prefiro não saber se chegou a sugerir que ela fizesse um aborto. Mas se no caso da pergunta à resposta fosse afirmativa, não estranharia. Seria apenas mais uma decepção com esse cara que me ensinaram a chamar de pai.
Decidido a não aceitar a proposta do meu avô materno, (não sei se por livre e espontânea vontade ou por pura e simples pressão, acreditando na segunda hipótese) ganhou um bar do pai e foi se casar. O bar era seu, de onde deveria tirar o sustento da família que crescia. Quem trabalhava para a grana entrar no caixa, era ela. Grávida e depois comigo no colo.
Ele preferia sentar-se à mesa com os amigos e bancar as rodadas de cerveja. Fazia média, vivia de aparências e ostentava a imagem de cafajeste que tanto lhe cai bem.
Preocupação com o bem estar dela e da filha pequena, ali naquele ambiente? Nenhuma. O que sempre foi prioridade em sua vida? A boêmia. Seu luxo (lixo) eram as madrugadas acompanhadas dos amigos e eventualmente de alguma mulher. A família era para quando sobrasse um tempo, se sobrasse. Ela, se redobrando entre ser mãe, mulher, dona de casa e de bar, ia amontoando funções e decepções.
Sonhos iam se desfazendo. O homem que amava era a grande frustração da sua vida. O amargor se fez sua companhia inseparável.
Papai fez dela uma mulher rude, fria. Apagou todo o brilho nos olhos daquela menina que só tinha olhos para ele. Destruiu sua crença no amor e em qualquer sentimento bom. Acabou com sua ingenuidade. Tirou de mim a oportunidade de ter uma mãe feliz e amável. Uma mulher sem carinhos desaprendeu a dar carinho. Ele não se dava para mim e me tirou ela também.
Como posso perdoar tais gestos, se cada erro seu são punhais afiados no meu peito, que doem e sangram mesmo depois de 26 anos?
Como posso viver entre o pai herói que quis ter e a fraude que tive? Não dá para correr em sua direção e abraçá-lo como se nada tivesse acontecido. Não permito que esses desejos insanos de ficar perto, sentir seu cheiro, beijar suas bochechas com a barba cerrada, sejam realizados impulsivamente. Não posso ser sua filha, se vi e ainda vejo tanto sofrimento nos olhos da minha mãe. Por sua culpa, sua máxima culpa.
Ele escolheu me abandonar e como ainda posso querer e precisar tanto de um homem assim?
O que me corrói por dentro são as suas atitudes machistas e o fato de querer esquecê-las para pedir que me pegue no colo e me dê todo o momento que não vivi ao seu lado. Não posso e não deveria amá-lo, mas o amo acima de tudo e de todos. Penso nele mais do que gostaria. No ódio que sinto, na raiva e no desprezo que deveria sentir e na falta imensurável que me faz.
Como ele consegue dormir depois de tudo que fez? Como consegue passar por mim sem me dizer bom dia, sem demonstrar saudades ou o menor arrependimento? Como consegue ter nas mãos todas as minhas lágrimas e ainda se desfazer delas como se nada disso fosse importante? Quantas vezes digo ao mundo que se ele morresse, nenhuma falta faria na minha vida. Quando penso nele dentro de um caixão, quero que me enterrem junto.
Que enterrem todos os momentos ruins que presenciei. Todos os dias que o chamei em vão. Cada aperto no peito, saudade, abraço recolhido. Orgulho ferido que maltrata, machuca, me faz chorar desesperadamente enquanto escrevo essas palavras sem reflexão. Um impulso maldito de por para fora cada desengano familiar guardado, amontoado nas minhas costas como um fardo pesado demais, do qual ainda não consegui me desfazer.

sábado, 1 de dezembro de 2012


Meu pai queria um menino, mas me chamo Amanda e isso não ficou bem resolvido na cabeça dele. Eu era um embrião e não sei até que ponto os beijinhos dados na barriga de mamãe, com elogios posteriores ao garotão do papai podem ter me atingido. De qualquer forma, se enquadra como argumento para ilustrar meu lesbianismo atual.
Seguiram-se os meses. O médico se aproximou dele na sala de espera:
- O bebê nasceu e é uma garotinha.
Posso imaginar a cara de decepção que tentou disfarçar ao entrar no quarto e entregar as flores para minha mãe. Quem iria acompanhá-lo nas peladas de futebol? Quem se sentaria à mesa com ele, beberia cerveja e falaria sobre assuntos banais, desse tipo que os homens adoram? Quem iria levar adiante suas características de macho machista?
Se soubesse meu sexo antes, poderia ter reconsiderado a proposta do meu avô materno:
- Não precisa se casar com a minha filha. Onde comem onze, comem doze. Eu crio o bebê!
Mas agora já era tarde. Eu estava chacoalhando no ventre quando decidiu entrar na igreja, de terno e gravata, e dizer mentiras na frente do padre. Jurou amá-la na alegria e na tristeza, na saúde e na doença e todas essas baboseiras que se impõem numa cerimônia religiosa. Alguns choramingam, outros sentem pena do enforcamento. No final não passa de mero teatro sem motivos para aclamação.
Para mim, o pior foi ter prometido que seria até que a morte os separasse. Já se foram 18 anos e não fui a nenhum velório.
Para o resto da família paterna eu também não era uma novidade. Meu tio já tinha duas filhas para que minha avó e minha tia emperiquitassem e ensinassem a ser verdadeiras damas. Não precisavam de mim para suprir esses desejos. Fala sério! Um menino seria o ideal para completar o ciclo de netinhos. Mas não! Eu estava lá para atrapalhar os planos e não ser nem uma coisa nem outra. Nem o garotão almejado, muito menos a garotinha delicada, sensível e cópia das minhas primas.
Às três horas da madrugada, daquele dia 12 de março, depois de ter feito minha mãe sofrer desde as 10 da manhã e ter demonstrado pela primeira vez minha teimosia, chorei. Escolhi que não nasceria de parto normal. Devo ter me assustado com aquele canal estreito e não dilatado por onde queriam me passar. Alguém espaçosa não poderia vir ao mundo se apertando, mesmo se a alternativa viesse a cortar a carne daquela que mais amo no mundo.
 Cesariana e meu rosto sujo com seu sangue. Mal ela sabia o quanto ainda sagraria por minha culpa.
Por mais uma ironia, a maioria dos dedos que apontavam em minha direção, afirmavam que eu era a cara do papai. Não que isso me traga algum orgulho. Se tem uma coisa que não suporto é que me comparem com ele, mesmo que apenas fisicamente.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Capítulo 1 – Pai!




Pai! Pode ser que daqui a algum tempo, haja tempo pra gente ser mais, muito mais que dois grandes amigos. Pai e filho talvez... Pai! Pode ser que daí você sinta qualquer coisa entre esses longos anos em busca de paz... Pai! Pode crer, eu tô bem, eu vou indo. Tô tentando, vivendo e pedindo, com loucura pra você renascer... Pai! Eu não faço questão de ser tudo, só não quero e não vou ficar mudo pra falar de amor pra você... Pai! Senta aqui que o jantar tá na mesa, fala um pouco tua voz tá tão presa. Nos ensine esse jogo da vida, onde a vida só paga pra ver... Pai! Me perdoa essa insegurança, é que eu não sou mais aquela criança, que um dia morrendo de medo, nos teus braços você fez segredo, nos teus passos você foi mais eu... Pai! Eu cresci e não houve outro jeito, quero só recostar no teu peito, pra pedir pra você ir lá em casa e brincar de vovô com meu filho no tapete da sala de estar. Pai! Você foi meu herói meu bandido. Você faz parte desse caminho que hoje eu sigo em paz...
                                                                                                                  (Fábio Jr)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012


Sozinha nesse quarto. Minha voz ricocheteando nas paredes morbidamente brancas e nos travesseiros de fronha cor vermelho intenso, estampado com flores nada discretas em tom de violeta. Um leve cheiro de suor do meu pai respingado a noite, mesclado com a fragrância do amaciante de roupas, me remete as férias passadas no apartamento de vovó.
Nunca me senti à vontade por lá, por mais que seus esforços fossem constantes.
Típica estirpe classe média (mediano, medíocre), com almoços em restaurantes e as críticas de meu avô porque eu não sabia comer como manda a etiqueta.
- Pega o guardanapo para limpar a boca menina.
- O garfo é na mão direita. (Ou será que é na esquerda?)
- Não Amanda, eu já disse para não pegar com a mão. Isso é nojento.
Lá me sentia como se estivesse dentro de uma roupa apertada, prendendo minha respiração e inibindo meus gestos excessivos.
Tudo muito limpo, bem passado, organizado. Um grande e verdadeiro pé no saco de qualquer criança. O único momento onde podia relaxar era a mamada. Quando tinha oito anos, ainda existia por lá uma mamadeira guardada para mim, que vó Branca preparava com leite morno e achocolatado. De vez em quando me dava à orelha para eu alisar. Era mania para dormir. Mamar e alisar.
Na falta de calor humano, alisava a minha mesmo, a da esquerda. A mão direita estava ocupada empunhando meu símbolo máximo de puerilidade. De qualquer maneira era preciso uma orelha, senão o sono não vinha.
Apesar do desconforto e hábitat estranho, ainda era uma prerrogativa. Passar férias deve pelo menos fazer com que você se sinta num local diferente. De que adiantaria a viagem se com ela predominasse a monotonia? E a diferença estava nas taças de sorvete, com cinco bolas, da sorveteria da esquina. Nos clubes todo fim de semana e na praça de frente ao prédio, onde tinha amigos e liberdade.
No fim das contas, acabava sendo uma experiência agradável. Meu pai deveria ser a presença mais importante, mas não o encontro nas minhas lembranças. Nem se me esforçar.

Vou lembrar o tempo de onde eu via o mundo azul.




“A lua inteira agora é um manto negro... Quero um machado pra quebrar o gelo, quero acordar do sonho agora mesmo, quero uma chance de tentar viver sem dor... O lado escuro é sempre igual, no espaço a solidão é tão normal. Desculpe estranho eu voltei mais puro do céu...”.
                                                                    (Nenhum de Nós)

terça-feira, 27 de novembro de 2012


Estafa mental é o que anda me consumindo. Um conflito interno que varia entre pensar ou seguir alternativas impostas sem relutar. De qualquer forma, muda pouca coisa. Estou exausta, agoniada e triste. Sei que nada posso sozinha e as pessoas não se importam. Nem têm porque se importar. De que adianta tantos pensamentos utópicos e românticos, se mal posso andar na frente de quem me atropela?
Por esses dias queria parar de pensar. Poder tirar da mente com uma varinha de condão, tudo que me faz refletir e me sentir cada vez menor diante da impossibilidade de concretizar. Queria relaxar! Sobreviver como tantos. Não problematizar meus atos e os alheios para tentar consertar o que já está espatifado. Meus cacos mentais estão por aí, a me assombrar. Talvez o paraíso seja só meu e por ser só não posso dá-lo a ninguém, nem a mim mesma.
Um tanto quanto a loucura que esvazia as coerências. Um tanto quanto sentimentos que pairam no ar e invadem meus pulmões. Um tanto quanto dolorido, como os espinhos da flor que perfuram dedos e a protegem das minhas mãos trêmulas e do meu nariz ansioso por perfumes puros. Minha sensibilidade é ausente de beleza. Sem chão, sem medidas, me sinto doente, arredia e um tanto quanto vegetando em meio a uma sociedade que não me pertence.
Diferente de tudo, diferente de todos, com ânsias exatas, presentes e inocentes. Será que algum dia poderei me adaptar antes que enlouqueça? Antes de ser mais uma vez banida? Capacidade intelectual talvez seja um tema para estas linhas que há sete páginas já se iniciaram, sem propósito aparente e sem ponto de partida. Tão mal pensadas! Dificilmente chegarão a excelência ou alcançarão algum objetivo.
Ainda acredito em felicidade e não consigo vê-la separada do meu conceito de paz. Mas existe em mim uma melancolia derramada a uma agonia crescente, presente nos olhos. Estou inquieta, pensativa e sofrendo.
Distante do ambiente em que vivo por sonhar com algo diferente. O que realmente está valendo à pena? São tantos conflitos com que bato de frente. Me sinto perdida em meio aos meus sonhos e ao máximo que consigo concretizar. Quanto mais penso e me pergunto, inúmeras respostas surgem como águias observando à presa. É um ciclo sem fim e que me mantém como rato naquelas rodinhas das suas gaiolas. Eternamente rodando atrás de uma perfeição que nunca vou alcançar, por nunca me contentar.
Se não às grades em círculos, talvez as garras e o bico fino atingindo com precisão aquele ponto fatal! A morte... Da alma, da calma e de todo e qualquer suspiro de descontentamento.
Eu, uma pensadora frenética, descontrolada, bipolar, sempre em busca da crítica, da melhora, da solução.
O que vejo é: meus sonhos me tirando o sono. Rolando pela cama em contorções desnecessárias, cruciantes. Insônias crônicas, amanhecendo com olhos inchados e maquiados de olheiras.
Não pretendo aqui travar batalhas intermináveis entre o certo e o errado. Isso é tão subjetivo. Muito menos chegar a qualquer lógica sensata. Tento fazer com que eu mesma entenda o que se passa nessa minha mente atormentada.
Há tanto tempo não me permito sonhar. Vivo refletindo, tentando achar alternativas. Não reconheço o meu sorriso no espelho.
Tantas vezes prefiro ficar absorta nos meus devaneios, ouvindo músicas depressivas, que usem palavras complexas e toquem minha alma. Socializar não faz parte do meu vocabulário. Nada me completa ou agrada. Perdi meu encaixe. Tenho crises de choro e identidade. Sou a pessoa que queria ser quando criança e essa pessoa é triste, fria e racional. No fundo só queria ser feliz, livre e em paz.
Meus princípios me corroem e as pessoas não se adaptam a mim. E quem disse que elas têm que se adaptar? É, "carosbaratos" leitores, desculpe pela má interpretação dessas (insisto) mal traçadas linhas. Desculpe a incoerência das frases, cada vírgula mal posta e os erros de português gramatical perfeito. E desculpe por não conseguir compreender a lógica desse mundo torto, insano e desumano.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012


Queria desabafar com alguém em quem confie cegamente. Mas quem? Essa tela e teclados, que me entendem da forma mais profunda e dilatada que alguém pode entender outro alguém, seria a saída? Sei que pedir um ser de carne e osso seria demais! Tão cedo ela não vai voltar. Não terei abraços e sinceridade doída. Nem tão cedo alguém conseguirá me penetrar como Luísa, sem usar as mãos ou qualquer artifício sexual.
As máquinas têm a vantagem de não dar conselhos inúteis e não olhar com ar de reprovação. Ouvem caladas. Não interrompem, nem cortam o raciocínio ao meio. Deixam perpetuar momentos “intelectualóides”. Posso usá-las quando quiser, desligar quando bem entender e nem preciso retribuir o favor. O egoísmo pode permanecer sem conflitos entre as normas da boa educação e a minha pretensão em me preocupar apenas com meu umbigo.
Diante da máquina me sinto à vontade e é onde quero ficar. Nessa terapia, me descobrir e me estrepar. Relaxar e ao mesmo tempo notar cada músculo endurecer, seja de tesão, seja de ódio. Quero que as gargalhadas ressoem das profundezas do inferno. (Isso é plágio). E por que não chorar até sentir a boca seca e o organismo desidratado?
Quero me encontrar, para saber por qual caminho será mais saboroso me perder. Me excitar com cada frisson revivido e vomitar com as náuseas que embrulharão meu estômago. Sei que vou tornar a me apaixonar por cada um que entupiu meu coração, para enfim, expulsá-los de dentro de mim.

E se eu falar sobre o que não entendem?



“Desconheço quem tenha razão... Quem pode me dizer como exatamente todo mundo deveria ser?... Poucos escutam, muitos se ofendem. A verdade é que não há verdade”.
(Matanza)

sábado, 24 de novembro de 2012


Na escrita maquiamos as palavras para que soem mais bonitas ou tristes e consideravelmente difíceis de serem compreendidas. Antigamente (e no meu caso enquanto ainda era criança), se rimava amor com dor ou flor sem receios. Nunca fui fã das rimas e não as utilizo em demasia - quase nunca. No entanto, invejo alguns poemas que parecem um quebra cabeças.
 As palavras são dispostas sutilmente, como peças encaixadas com perfeição e que não fariam sentido se não estivessem exatamente ali, no lugar onde foram criadas para estar e dar coerência ao que quer que se proponham.
Não consigo me imaginar peneirando nos dicionários, junções de letras que soarão melhor. Ou não produzirão uma cacofonia qualquer. Nem mesmo depois dos conselhos do Nilo:
- Amplie seu vocabulário. Você não deve desprezar os dicionários. Eles são espetaculares e uma fonte de conceitos sem igual. Senão, você corre o risco de ficar capenga e se embrutecer por não saber qual palavra utilizar.
Escrevo o que vem a mente e o que a mão costuma sentir. E não me encaixo no padrão de escritora que pretendo ser. Permito que as emoções controlem a coerência da arte. E não entendo uma arte que não venha essencialmente da sensibilidade. (Ressaltando que parte de mim concorda com ele e a outra parte tem vontade de mandá-lo ir à merda).
Uso a escrita como terapia, já que não tenho grana para arcar com uma. Quem preferir pode sair por aí dizendo que não tenho criatividade para inventar uma história qualquer. Prefiro falar da minha vida. Mas, você ainda se lembra que o diretor do filme não sou eu? Nada mais é do que uma comiseração quando meu lado “coitadinha” se apodera.
A atriz (que fica do meu outro lado) já não se importa com a forma que essas linhas serão absorvidas por quem chegar eventualmente a ler. Ela jamais recorreria a um terapeuta, embora esteja ouvindo de bocas alheias que deveria curar seu provável transtorno bipolar não diagnosticado. Ou seria uma dupla personalidade? Esse sim é um diagnóstico. Mas deixe que zombem e chamem de bipolaridade esse mal que me acompanha desde que me entendo por gente. Aprendi a gostar e não permito que alguém entre em minha mente e arranque ele de mim.
Para onde iria essa intensidade que move cada passo que dou e alimenta a minha personalidade? E os olhares atônitos diante das minhas reações enlouquecidas, imprevisíveis, escarrando hipocrisias que ostentam como verdades absolutas? Quem me tornaria se deixasse de sentir absurdamente? Um moribundo, perambulando atrás de qualquer resquício de insanidade.
            Definitivamente não quero isso para mim. Não vou procurar alguém que me cobraria para valorizar suas percepções inúteis. As drogas, o álcool e o cigarro contribuem por si só com esses meus deslizes emocionais. Escrever é a minha válvula de escape. Meu processo lento de desintoxicação dos vícios e venenos que percorrem minhas veias. No final, quero deixar de ser infantil e exagerada.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012


Existe algo em meio a tudo que não consigo capturar e compreender. É sobre mim, mas parece um filme do qual sou apenas telespectadora. Ás vezes aplaudo, me emociono. Em outras ocasiões abro um sorriso. Tantas vezes franzo a testa em sinal de incógnita. Em nenhum caso consigo interferir no andamento das cenas ou no conteúdo dos textos.
Acompanho um script que não escrevi e interpreto um personagem que não incorporei. Não há espaços para improvisos ou palpites. O diretor é um carrasco, que direciona os episódios e as atitudes perante cada um deles. De alguns resultados me orgulho, de outros sinto uma vergonha imensa. Mas nesse roteiro não há tempo para ensaios ou refilmagens. Do que jeito que sair, vai para o ar.
Resta aguentar o resultado das críticas, tantas vezes destrutivas e sem fundamento teórico.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012


Nas minhas inconstâncias, penso em morrer. Tenho medo da palavra em si e ainda há muito a se viver. Prefiro pagar para ver (quantas rimas estúpidas). Sou curiosa demais para perder essa oportunidade. E covarde. Nunca consegui consumar o ato, nem mesmo nos piores momentos de crise.
Á demência me rondava, embora não tenha certeza sobre essa colocação no passado. Quando entrava em desordens existenciais, eu me batia. Arranhava os braços e as pernas, com unhas mal pintadas e afiadas. Mordia a boca e as bochechas até sangrarem. Jogava a cabeça contra a parede, chacoalhando o cérebro e as ideias. Beliscava a pele até o local ficar roxo, sem jamais alcançar o objetivo de arrancar um pedacinho sequer.
De arremate, puxava os cabelos até o couro cabeludo latejar e não suportar as dores. Hoje os fios caem, sem qualquer tipo de ajuda.
Essas atitudes nunca foram ferramentas para chamar atenção. Ao contrário! Meu orgulho não permitia o uso de estratagemas que atraísse pena. A indulgência alheia não satisfazia meus caprichos. Fazia por não domar os impulsos agressivos e para me concentrar em outra dor que não fosse aquela dentro do peito.
Estive próxima de cortar os pulsos, mas a faca escorregou. Sequer chegou perto de encostar a veia, enquanto eu chorava, infeliz e covardemente. Tomei excesso de remédios, mas nunca o bastante para me prejudicar como prometido. Sequer desmaiei. Sequer deixei essa pretensão transparecer. Não queria expor minha fragilidade. Minha e só minha continuaria sendo, para ser usada em doses homeopáticas, quando me fosse necessária.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012


"Contradições de uma história mal escrita" poderia ter sido um título interessante dessa obra de arte. Condensa minha incoerência mental, com a certeza de não ter alcançado excelência escrita para me aventurar por essas linhas. Realça, ainda que subliminarmente, a vocação de ouvir músicas reflexivas e fazer palavras cruzadas como passatempo viciante. O que as palavras cruzadas têm a ver com isso? Não sei, nem subliminarmente falando.
Desde os 14 anos escrevo livros. Antes disso já viajava em rimas. Ápice do romantismo que habitava meu peito. Comecei com rabiscos de um caderno e um amor impossível pelo Fábio. (Impossibilidades me fisgam de uma maneira impressionante). Escrevia a lápis, já sabendo que deveria revisar o texto.
Ganhei uma máquina de escrever da minha mãe, mas não usava. Não tinha segurança nas palavras ou sentimentos que traduzia em junções de letras. Hoje em dia a segurança ainda não é parceira, mas existe no meio da sala um exemplar antigo de PC. Apertar o backspace ou o delete caso ache necessário chega a ser excitante. Tecnologias que odeio a favor da facilidade.
A motivação em escrever sobre o Fábio acabou nas primeiras 20 páginas, junto com o "amor". Ínfimo, rasgado e queimado numa fogueirinha particular, dentro de um vaso de barro que havia na estante. De lembrança, apenas as marcas escuras no vaso, uma comida de rabo de mamãe pelo estrago ao seu bem material e a tristeza de ter posto fim ao meu primeiro grande futuro best-seller.
O fim do amor foi um alívio.
Aos 17 anos iniciei outro livro-futuro-grande-best-seller. Inacabado. Outra autobiografia surreal, moldada nas entrelinhas da minha imaginação fértil. "Nada melhor que um rock" era o título. Hoje sei que era piegas e brega o que escrevi, mas de acordo com Fernando Pessoa ou Álvares de Campos, tanto faz, o amor tem suas ridicularidades.
Quem nunca escreveu cartas de amor ridículas? (Vamos, não perca a oportunidade de atirar a primeira pedra). Dei minha alma ao Sandro, como quem a vende a um Diabo de olhar penetrante, boca vermelho-sangue, frases serenas e trejeitos elegantemente hostis. Sem falar no pau ereto, sempre a minha espera. Pronto para o ataque.
Com hostilidade apertei o delete. Esvaziei a lixeira e lá se foram o rock, as palavras, a “breguice”, os sentimentos despejados e a precariedade da história e do amor que sentíamos um pelo outro. Fiz com o livro e com ele. Delete e pronto. Sem choro, sofrimento ou qualquer tentativa de recuperação. Delete, uma dose de Juliana e adeus Sandro, junto com todo lixo que essa história tinha juntado. Remexer essas quinquilharias é tarefa para mais tarde, mais linhas e mais cigarros e vodkas para aguentar.
Num canto escuro, existia o back-up. Alternativa de recuperação? Não tenho certeza. Talvez possa vir a ser outro início, de uma nova descoberta, uma nova história.

sábado, 17 de novembro de 2012


Hoje, 23 de abril. Nada para fazer além de voltar ao trabalho, onde não há tarefas estimulantes. Tudo mecanicamente programado para que não saia diferente do que deve ser. Cada centímetro exato e milimetricamente coordenado. Telefonemas. Clientes. Programas de computador repleto de dados. Dinheiro alheio. Sorrisos forçados, falsos. Vendas. Metas. E um salário no fim do mês que não me motiva, tão pouco me faz feliz.
Vendedora não foi bem o que sonhei, mas é para loja que devo ir quando tocar o relógio do celular. Já estão se acabando às duas horas de almoço a que tenho direito.
Ainda preciso me sujeitar aos empregos monótonos que aparecem no meio do caminho. Aquele mesmo caminho onde, de acordo com Drummond havia uma pedra. Só não quero engrossar as estatísticas que contabilizam jornalistas frustrados, fumantes e bêbados, que fumam, bebem e se frustram ao olhar para trás e ver que, de acordo com Cazuza, aquele garoto que ia mudar o mundo acabou por se adaptar. Hoje assiste a tudo em cima de um muro.
E eu sou estudante. Há espaço para o álcool, a nicotina e as frustrações de praxe.
Acordo e vivo sem projetos que me dêem motivos para acordar. As sete da matina essa merda desperta e me assusta. Seis dias da semana. E assim, meio sonâmbula e assustada, como não estou fazendo nada (pelo visto nem você também, como diria Jair Rodrigues) resolvi continuar este livro.
Enquanto escrevo ou penso, ouço minhas músicas melodramáticas (eu sei que já deu para perceber). Sonho com um futuro promissor. Veja que lindos pensamentos matinais me deslumbram: estabilidade emocional e financeira e reconhecimento por um talento que insisto em acreditar que tenho - o de escrever.
Mas "projeto de vida" é uma expressão que piscianos - aqueles seres nascidos sob o signo de peixes: chorosos, sensíveis, inconstantes, como eu - desconhecem o significado. Até tento colocar algo em prática, mas prática é uma palavra que ainda não absorvi o significado. E o destino se junta com a preguiça da instabilidade emocional constante e prega peças. Muda as idéias de lugar.
 Obviamente conheço o Nilo, meu recente ídolo intelectual e amor heterossexual platônico.
Ele é um desses tipos chorosos, sensíveis e inconstantes. Louco. Uma espécie de Homem rara no mercado, já com sua dona. Penso que ele conseguiu mesclar a dimensão em que vivemos, (nós, os piscianos) com o mundo real em que a maioria das pessoas vive (o resto do zodíaco, exceto os cancerianos). Já consegue até fingir normalidade. Claro que não especificamente dentro das contestáveis regras da ABNT pessoal socialmente aceitável. Mas na melhor das hipóteses, pelo menos cortou o cabelo, faz a barba (mal feita) com certa freqüência, parou de se drogar ilicitamente e usa um traje esporte fino antiquado que, sem sombra de dúvida, herdou do avô.
Espero que os genes masculinos não tenham uma influência direta sobre capacidade de adaptação.
Quem sabe daqui uns anos eu também aterrisse. Reprima a mente que flutua por espaços irreais e coloque o pé no chão. Talvez trabalhe com a rotina de um jornal e faça matérias inúteis sobre acidentes e assaltos à mão armada. Infeliz, melancólica e mantendo a bebida e o cigarro como companheiros. Alguma droga mais forte, eventualmente. Pagando bem, que mal tem vender a dignidade e a ética.
Principalmente se a moeda for ascensão profissional. Futuro, não cabe a mim premeditá-lo.

Apresentação


Um vocabulário inteiro de ilusão.



“Tudo bem quando termina bem e os seus olhos não estão rasos d'água... Tudo que viceja, também pode agonizar e perder seu brilho em poucas semanas... Tudo que morre fica vivo na lembrança, como é difícil viver carregando um cemitério na cabeça. Mas antes que eu me esqueça, antes que tudo se acabe, eu preciso dizer a verdade.”
                             (Biquíni Cavadão)